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De collant, meia calça, saia, sapatilha e coque, a aluna chega na sala, faz o aquecimento e, então, a aula na barra começa. Primeira posição em demi-plíés, segunda posição em battements tendus, e assim em diante. Hora dos saltos, primeiro relevés, depois passés ou retirés e aula vai fluindo nesse ritmo. É assim a rotina de quem almeja ser bailarina clássica.

Em Brasília não é diferente. Desde a inauguração da capital, o balé esteve presente. Norma Lillia Biavaty, por exemplo, foi pioneira ao desbravar o desafio de construir a primeira escola de balé, em 1962, na nova capital recém-inaugurada. Desde então, foram surgindo diversas escolas que buscavam levar a arte clássica para os brasilienses. No entanto, ainda hoje são encontradas barreiras para quem quer se profissionalizar e viver do balé. Obstáculos estes que são encontrados no mercado de trabalho, na rivalidade, no padrão de beleza exigido, e em tantas outras questões.


Um panorama do balé clássico brasiliense


Norma Lillia, a primeira bailarina da capital, e Gisele Santoro, bailarina carioca que dançou na inauguração de Brasília, em 1960, foram as precursoras das escolas de balé na capital. Enfrentaram desafios e conseguiram montar suas instituições, que são bem conhecidas no meio artístico até hoje e servem como inspiração. Após elas, grandes nomes foram surgindo ao longo dos anos, como Noara Beltrami, escola de dança conhecida por seus grandes espetáculos no final do ano. São exemplos de como o balé clássico foi crescendo ao longo dos anos no DF.

No entanto, nem só de grandes escolas com altas mensalidades e grandes nomes vive o cenário do balé clássico brasiliense. Em 1993, foi fundado o Centro de Dança do Distrito Federal, uma instituição incentivada pela Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa, que busca contribuir com a consolidação de uma política pública no DF visando a difusão de diferentes estilos de dança, incluindo o balé clássico. Foi lá onde conhecemos a bailarina Inara Ramos, frequentadora do Centro de Dança.



Na entrevista ela fala um pouco sobre como funciona a utilização das salas do centro. “O espaço é público, mas algumas aulas que acontecem são particulares. Se um professor quer dar aulas de balé, ele solicita a utilização da sala e ele mesmo define o valor que será cobrado”, disse. E apesar de algumas aulas serem pagas, o próprio Centro de Dança eventualmente oferece aulas gratuitas. Inara conta também que o espaço ficou fechado por muito tempo pois precisava de reformas, e reabriu há aproximadamente dois anos. “Está sendo tudo muito novo, de novo”, explica.

O bailarino Pedro Jardim faz balé clássico há 9 anos e relata que sempre foi bolsista, o que acabou sendo fundamental para se consolidar como bailarino. “Quando eu comecei no Instituto Balé Brasil, existiam bolsistas que só tiveram essa oportunidade de fazer balé por conta da bolsa.” Ele conta que na maioria das escolas as mensalidades são altas, de R$ 300 a R$ 400, e que nem sempre os pais conseguem pagar. “Acaba criando prioridade entre a escola e o balé, e a escola tem peso maior”, afirma.


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Pedro Jardim e seu irmão Paulo

Dessa forma, em Brasília temos projetos sociais, que buscam a inclusão de pessoas de todo o Distrito Federal entorno no mundo do balé clássico. Há onze anos surgiu o projeto Viva Arte Viva, idealizado por Doner Cavalcante. A proposta faz parte da Associação dos Amigos das Artes de Brasília (Amabra), conhecida como Orquestra Filarmônica de Brasília. O projeto oferece oficinas gratuitas de balé clássico, utilizando o método Vaganova – técnica que busca o aprendizado de forma gradual e enfatiza a consciência corporal do aluno a cada movimento –, também utilizado pela Escola do Teatro Bolshoi no Brasil com a proposta de igualdade de oportunidades sem distinção de classe social.


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Aula infantil no projeto Viva Arte Viva

Além do Viva Arte Viva, existe também o projeto sociocultural Dançar é Arte. Fundado no ano 2000, foi idealizado pela bailarina e professora Kátia Moraes. A instituição busca usar a dança como instrumento para a transmissão de valores e conhecimentos. Ademais, o Centro Cultural Dançar é Arte proporciona inclusão e integração social de crianças e adolescentes em vulnerabilidade social do DF.

A bailarina Bárbara Elen, que atualmente faz parte da Escola de Dança Noara Beltrami, afirma que o balé e a arte em si são formadores de caráter e personalidade nas crianças e jovens, e que a existência de projetos sociais é muito importante. “Jovens de baixa renda, que normalmente não teriam acesso as aulas de balé, têm oportunidade nos projetos, para que vivenciem um pouco a experiência que a arte pode proporcionar em suas vidas”.


Entre a desvalorização e o amor pela dança


O trabalho profissional da dança no cenário brasiliense é extremamente restrito, ainda mais quando se trata de balé clássico. Muitos que querem seguir a carreira como bailarino profissional se mudam para outras regiões e até países, em busca de companhias que oferecem estabilidade profissional, ou optam por outra carreira justamente pela falta de oportunidade. Eles têm que escolher: ficar pelo amor à arte sem ter a certeza de que serão bem sucedidos ou tentar a vida fora da capital.

Em entrevista, o bailarino Paulo Jardim relata a realidade de viver como bailarino em Brasília. Conta que do início ao meio do ano não existem muitas oportunidades de contrato por parte das escolas, uma vez que a maioria dos espetáculos acontece no final do ano. Todo o resto é bastante incerto. “Fui contratado por quatro escolas pra dançar no final do ano, tenho ensaios todos os dias. Você tem que ser contratado por quatro escolas diferentes para ter uma boa renda”, diz Paulo sobre sua atual situação.


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Paulo Jardim

Quando questionado sobre como esse cenário poderia ser melhorado, ele comenta o quão importante são as horas e horas de ensaio por dia, mas que se tornam impossíveis quando você não recebe para isso. Fez, inclusive, uma comparação com uma companhia de balé russa, The Kirov Ballet: “Quando chega um balé de fora, Kirov, por exemplo, as pessoas chegam a pagar 180 reais pra assistir. Mas aqueles bailarinos estão dedicando a vida deles, de ensaio oito horas por dia. Se a gente daqui estivesse sendo pago pra ficar oito horas por dia ensaiando, a gente ia ter um nível tão bom quanto o deles”, conclui.

No Distrito Federal, os amantes de dança que buscam trabalho nessa área, geralmente, tornam-se professores ou então abrem seu próprio negócio, como, por exemplo, uma escola de dança. Assim, é possível observar que no DF existem várias oportunidades para estudar balé, mas o mercado não oferece muitos cursos direcionados à capacitação ou aperfeiçoamento dos professores, muito menos locais de trabalho estáveis.


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Yuri Briedis dando aula para adultas

A professora de balé clássico Regina Corvello afirma que o mercado de trabalho na capital é muito complicado, visto que se faz necessário patrocínio de empresas privadas ou pela Lei Rouanet (se refere a política de incentivos fiscais que possibilita empresas e cidadãos aplicarem uma parte do imposto de renda em ações culturais). Até mesmo com o Fundo de Apoio à Cultura (FAC), o cenário continua incerto, já que é concorrido por centenas de movimentos artísticos. “Eu costumo dizer que trabalho por amor à arte. A gente não é bem remunerado, a gente não tem carteira assinada, eu não sei o que é férias, eu não sei o que é 13º”, relata Regina.


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Regina Corvello ministrando aula

Atualmente existem várias escolas de balé clássico em Brasília, mas o campo de trabalho segue escasso. É necessário mais incentivo, tanto público quanto privado. O balé da cidade de Brasília, por exemplo, foi uma tentativa de estabelecer e movimentar um mercado de trabalho com mais oportunidades para os bailarinos, como também para todas as profissões que englobam esse universo da dança, mas que durou apenas oito meses, por não conseguirem apoio e investimento a longo prazo. Quanto a instituição privada, temos o SESC (Serviço Social do Comércio) que oferece atividades como o balé por um preço acessível, além de disponibilizar o Teatro Newton Rossi para apresentações de outras instituições, já que o Teatro Nacional se encontra fechado há pouco mais de 5 anos. São muitos os profissionais competentes e experientes, mas há pouco espaço dentro da cidade para a dança clássica.


Os dilemas por trás do espetáculo


“É muito difícil a profissão da bailarina'', diz Regina Corvello. ''Você tem que abrir mão de muitas coisas, cinema, alimentação e pra você dançar, o bailarino principalmente, você tem que estar no peso”. O que se busca são alunos que sigam esse padrão: corpos magros, pernas longas, pés curvados, e altura mediana. Baseado no estilo europeu clássico, as escolas de balé, não só brasilienses, como do mundo inteiro, se inspiram nesse modelo. É muito comum que bailarinos e bailarinas tenham uma certa insatisfação em relação ao seu corpo devido à esse padrão. Problemas como distúrbios alimentares e transtornos emocionais são consequências disso.


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Alunas de Regina Corvello com destaque em Maria Fernanda

Em entrevista, Regina Corvello diz que já pensou em desistir por conta desse estereótipo. “Eu tive alguns problemas porque quando eu estava dançando profissionalmente, tive anorexia e cheguei a ter 34 kg. Foi muito difícil porque eu não comia, queria estar no peso ideal, mais magra.” Por já ter tido distúrbios alimentares, ela afirma “ É por isso que hoje eu não falo pra nenhum aluno ‘vai emagrecer’. Não vão escutar isso de mim jamais porque eu sei o que passei”.

A bailarina Inara Ramos, que atualmente frequenta o Centro de Dança do DF, conta que também ouviu muito que precisava emagrecer. Porém, ao final da entrevista, Inara diz enxergar que ao longo dos anos esse padrão tem mudado. Gordo ou magro, cada um tem lutado para garantir seu espaço na dança. “Realmente existe um padrão, mas a nossa luta agora é contra ele, e entender que as pessoas têm tido espaço agora. Em algum lugar da dança tem espaço pra todo mundo, até mesmo dentro do balé”, conclui a bailarina.


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Bailarina Inara Ramos em aula

Em contrapartida, há quem diga que o físico do bailarino interfere no seu desempenho. O bailarino Paulo Jardim, por exemplo, concorda que nos dias de hoje, com a militância sobre padrões presente em diversos assuntos, é difícil enquadrar o balé nesse cenário de inclusão. Sobre a influência do corpo físico no desempenho da dança, ele menciona que “uma bailarina acima do peso, para dançar com um bailarino, pode gerar, por exemplo, um problema nas costas do bailarino”, já que na maior parte dos pas de deux (dança a dois, feita por um homem e uma mulher) a função do masculino é sustentar a bailarina no alto. Ainda assim, Paulo entende o quão complexa é essa situação que o balé clássico os coloca. “O corpo da mulher brasileira é diferente, nós não somos todos russos, com a perna totalmente lateral e todo mundo muito magro”, afirma.



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Ensaio Corpo de Baile da Escola Regina Corvello


Os estereótipos não estão somente relacionados ao corpo, como também ao gênero. Originalmente, o balé clássico surgiu por volta do século XV, criado por homens e praticado somente por eles, mas a realidade que temos hoje é totalmente diferente. A prática se tornou uma marca do gênero feminino, e, diante disso, homens praticantes da dança começaram a sofrer discriminação por parte da sociedade. Diferentemente da maioria das mulheres, que são inseridas no balé durante a infância por incentivo dos pais, os homens se inserem no meio por opção pessoal durante a adolescência, muitas vezes sem o consentimento dos familiares.

Atualmente trabalhando como professor de balé, Yuri Briedis conta que sua trajetória é um pouco diferente da maioria. Foi por incentivo de sua família que começou a investir na carreira de bailarino. Aos 17 anos ganhou uma bolsa para estudar balé na Rússia, mas acabou não indo. As oportunidades não pararam de surgir, mas por conta da pressão física e psicológica acabou desistindo. A falta de treinos, em vez de trazer alívio, acabou trazendo o efeito contrário. Foi aí que percebeu que suas dores físicas poderiam ser a abstinência da dança. Yuri voltou aos palcos e começou a dar aulas de balé e diz que se sente completo. “É realmente incrível um homem dando aula de balé dentro de uma escola formal”, se referindo a falta de inserção e ao preconceito sofrido por homens que escolhem seguir o ofício.


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Yuri Briedis



O palco e seus conflitos


Abram-se as cortinas.

Um corpo de baile presente no palco, com uma luz específica no centro, onde entra uma bailarina. Centenas de pessoas na plateia, todas com atenção na solista, a estrela da noite. Ela sorri e dança com tamanha leveza, que leva os espectadores a pensar que dançar balé pode ser algo fácil. Em meio a giros, saltos, pontas e elegância em profusão, ela encontra seu parceiro, e ele exerce sua função de sustentação e exaltação da bailarina. Eles dançam apaixonadamente, enquanto outros bailarinos ao fundo os admiram e se movimentam. Ao final, aplausos surgem de uma doce experiência e todos se lembrarão da performance daqueles que estavam em destaque. Essa é a beleza da arte dessa dança, mas também é onde se encontram os conflitos.


O destaque é um posto almejado por muitos bailarinos no Brasil e no mundo. Tanto pela paixão, quanto por significar uma estabilidade na vida. É a combinação perfeita. A concorrência e o cenário de oportunidades abrem as cortinas para uma realidade: a falta de cooperação entre os profissionais e o aumento do individualismo. Ao observar o cenário da capital e do país, Yuri Briedis, originalmente de São Paulo, diz que '' há uma falta de ajuda de uns com os outros. Isso não é exclusivo de Brasília. É geral. No mundo acontece muito isso. A arte trabalha muito com o ego''.

Uma característica vista com frequência no cenário brasiliense é o fato de que muitos bailarinos carregam o nome de suas escolas para o sucesso e assim acabam se tornando uma exclusividade. Quer dizer, no aspecto individual, as dinâmicas do balé criam ligações diretas entre os bailarinos e as escolas em que praticam, tendo essa ideia do pertencimento. Cada bailarino ou bailarina carrega em si um nome por trás, como se fosse uma fidelidade. É neste sentido que a individualidade opera em cada um. O nome como uma simbologia junto à dança.

É válido ressaltar que em nenhum momento é dito que todas as escolas em Brasília se comportam dessa maneira, mas que essa é uma visão comum entre os entrevistados que participaram da construção dessa reportagem. Dessa maneira, uma realidade em contraste com a que foi vista em maior peso é a vivência da bailarina Inara Ramos, que na maior parte de sua vida estudou com Gisele Santoro, quando sua academia ainda se localizava no Teatro Nacional. Santoro carregava a filosofia de que bailarinos são criados para serem livres e buscarem seu próprio caminho. A bailarina Inara, após anos convivendo e praticando dentro dessa academia, compartilha dessa visão mais desapegada da relação entre escolas e seus alunos.


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Gisele Santoro e Inara Ramos

O palco é a ação e ligação da arte com a sociedade. É ali que é possível se retirar da rotina, acessar interiormente algo somente seu, ser chamado atenção por alguém ou por alguns, onde existe o coletivo, mas um destaque a ser conquistado. Nem sempre é competição, não se engane. Quando a cidade permite, o palco é ocupado por expressões e desabafos.



Fecham-se as cortinas.


Fim de espetáculo.



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